Senhor K vivia
despretensiosamente. Abnegação, estoicismo e altivez eram
vocábulos recorrentes
quando alguém se referia ao Senhor K. “Você é econômico até nas
palavras”, balbuciava
com inclemência Emma, sua companheira de trabalho na alfaiataria
Guanabara. Senhor
K ouvia e absolutamente nada dizia. Lacônico, absorvia as
palavras, urdido em
seu ofício manual.
Emma,
senhorita formosa, mal compreendia tamanho decoro de Senhor K.
Ele é deveras
enigmático, divagava Emma com os seus perplexos botões.
K
detestava quando o chamavam de Senhor. Para ele tinha a
conotação de senhorio,
de fidalgo, ou coisa do gênero. Senhor K era um autêntico
artesão da
simplicidade.
A
lasciva companheira de trabalho suscitava um desejo irreprimível
em K.
Portanto, nada mais desolador do que ser chamado de Senhor. K
vaticinava que
quanto mais respeitoso fosse o tratamento recebido, menor a
possibilidade de um
eventual enlace amoroso.
O
exímio alfaiate nutria uma paixão secreta por Emma e ensaiava um
forma de se
declarar. Capitulado diante do seu ardente desejo, insepulto nos
seus devaneios,
buscava uma forma de revelar o seu obscuro afeto.
Numa
quarta-feira impiedosa, envolta num rigoroso inverno, a epifania
se manifestou em
cinco minutos reveladores. K declarou sua paixão avassaladora
por Emma, através
de um singelo bilhete. Gastou toda sua loa, inimaginável para
qualquer um dos
trabalhadores da alfaiataria, no manuscrito. O missivista
concluía a panegírica
carta, com um arrebatador convite. “Aguardo, no recôndito da
minha alma, a sua distinta
presença, hoje às vinte horas, no Cassino Selvmordstanker, Rua
do Ouvidor, 122”.
K
aguardou resignado, feito um pobre cão que espera o seu dono,
horas a fio a
chegada de Emma ao cassino. Depois de intermináveis horas, bebeu
e jogou sem
temer o porvir. Como no imaginário popular, “sorte no jogo, azar
no amor”, K
ganhou uma incalculável fortuna.
Em
hipótese alguma conjecturou sobre o dinheiro. O súbito
enriquecimento não fazia
sentido para K.
“Emma,
Emma minha, o que vale o dinheiro, sem a sua companhia”,
sussurrava K, bêbado.
Chegou
em casa, exasperado, indagando a vida sem a sua musa.
O
suéter encharcado de suor exalava o gosto agridoce da morte.
Parte considerável
do dinheiro espalhado pelo assoalho e o livro A moreninha do Joaquim Manuel de Macedo,
entreaberto na carcomida
escrivaninha de cedro, completavam a melodia fúnebre do
crepúsculo cinzento.
Indiferente
à corrente impiedosa do vento, que penetrava de forma atroz
pelas arestas da
vidraça, jazia o bilhete sepulcral.
“Emma,
Emma ingrata e homicida/ você é a única culpada da minha brutal
despedida/
deixo como legado apenas essa carta, a de um desprezado
suicida”.

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