O som e a fúria de Juraci de Brito: juracizar é o universo em encantamento

 


Urge, camaradas, driblarmos os infortúnios da vida.

Essa urgência, é importante ressaltar, se baseia na busca de alternativas que possam burlar os mecanismos de poder e dominação.

Sem cair, obviamente, no engodo do discurso midiático e das redes sociais, de apologia do empreendedorismo, cuja mantra principal é "se reinventar".

Como já dizia o filósofo de botequim, "reinventar é meuzovo".

Frases motivacionais e outros salamaques nunca foram evocados aqui, diga-se de passagem, caros influencers e coaches de plantão.

Mas afinal, ora bolas, o que fazer?

Não tenho respostas, tampouco, fórmulas prontas, mas tenho um ponto de partida para nossa reflexão de boteco. Para tal, recorro a um dos maiores pensadores brasileiros contemporâneo, o genial escritor e historiador Luiz Antônio Simas.

O Simas tem uma tese muito importante, que basicamente consiste numa guerra permanente entre o Brasil, pensado como projeto oficial, e a brasilidade, "entendida como esse campo simbólico e de elaboração de sentidos e de mundo".

Segundo L.A.S. o "Brasil (estado-nação forjado como projeto de exclusão e aniquilação de pluralidades) tentou matar a brasilidade, aventura fresteira e festeira  de invenção de mundo, liberdade, beleza e incessante produção de cultura. Nos aconchegos das brasilidades tecemos formas plurais de nascer, morrer, rezar, dançar, amar, comer, celebrar, cantar, vestir, falar, olhar, cheirar, perceber, brincar, inventar, jogar futebol, bater tambor, dobrar e desdobrar, na viração da aldeia, o terreiro- mundo. Somos um povo de culturas fresteiras, aquelas que, jogando nas rachaduras dos muros institucionais – com a destreza e a arte do drible no vazio de Mané Garrincha – inventam constantemente modos garrinchados de vida que buscam a transgressão, o equilíbrio gingado, a terreirização do território, como estratégias de jogo e combate contra a mortandade produzida pelo desencanto do mundo".

Uma das formas de transgressão, que a brasilidade propicia e é defendida por Simas, recebe o nome de garrinchar.

Garrinchar, de acordo com o escritor, é "subverter a lógica do jogo e entender que o processo – drible – pode ser mais importante que o objetivo final: o gol. Arriscar o deslocamento para o vazio, fugir da previsibilidade, chamar o marcador para a roda, entender o que o corpo pede, transitar entre o atleta e o dançarino, ver na bola – o objeto – a flecha fulni-ô acariciando o alvo, refazer a jogada, produzir o espanto, gargalhar na cara do zagueiro, sincopar o tempo para encontrar, no próprio tempo, o ritmo adequado: é do jogo".

Sigamos, parcos e renitentes leitores, agora com a contribuição do grande escriba Michel Yakini-Iman.

No livraço Na medula do verbo, Michel nos presenteia com a saborosa crônica, A encruzilhada e o craque da flecha de ouro.

Num trecho da crônica, Yakini-Iman, numa tabelinha literária, menciona o artigo O conceito de drible e o drible do conceito, de Renato Noguera.

O artigo de Noguera aventa a possibilidade de invenção do drible, como alternativa de movimentação em campo dos jogadores negros, já que estes não podiam tocar nos adversários brancos.

Noguera, segundo Michel Yakini-Iman, "vai além, ao dizer que esse jeito nosso de "driblar", se tornou "dibrar", porque pode vir da "palavra dibo que na língua kikongo significa tanto o nome de uma planta quanto um tipo de dança, ou ainda, o radical da palavra "dibotar", que significa discursar, palavrear". 

Nunca me aventurei na arte da coquetelaria, mas farei -- pelo menos pretendo, com a devida reverência aos dois escribas -- um coquetel com os ingredientes apresentados por eles acima.

Com a benção de Guimarães Rosa, que afirma que "o sertão é do tamanho do mundo", inicio as minhas digressões etílicas sob a perspectiva de um recorte geográfico.

garrinchar, verbalizado como modo de pensar pelo Luiz Antônio Simas, e advindo da genialidade do anjo das pernas tortas, encontra o seu congênere na minha cidade natal.

Falo, umbilicalmente ligado, às minhas origens. No caso, Gastão Vidigal, interior do estado de São Paulo.

Defendo junto aos meus conterrâneos, no meu manifesto solitário, o uso da expressão juracizar.

O neologismo é uma simbiose do nome pessoal Juraci com a palavra exorcizar.

Juracizar  consiste no ato de expurgar, esconjurar, ou melhor, exorcizar o passado opressivo do Brasil oficial, caracterizado, sobretudo, nas instituições de Estado, nas oligarquias, na burguesia, nos meios de comunicação de massa, entre outros.

E para consumar, de fato, o expurgo, é necessário um agente catalisador dessa ação.

Justamente, agora que entra o nosso camisa 10 Juraci, que é o elemento constituinte do vocábulo juracizar.

Juraci de Brito, o popular Tim, foi um craque de futebol em Gastão Vidigal, a minha Macondo.

Magistral em campo, driblou adversários e fez jogadas celestiais, encantando torcedores das mais variadas cidades da região. 

Feito Fio Maravilha, da bela canção do Jorge Ben Jor, só não entrava com bola e tudo no gol, porque tinha humildade.

O nosso personagem em questão, Juraci de Brito, não só utilizou as técnicas do futebol, como estratégias de encantamento do mundo, como as exportou para a vida cotidiana.

Teceu, através da sua singularidade, um jeito lúdico de se relacionar com a vida. 

E dá-lhe Jorge Ben novamente -- põe no repeat -- para ilustrar Juraci através da musicalidade: "ponta de lança africano, que vê/quero vê a rede balançar/A galera quer sorrir, a galera que cantar/A galera tá feliz ela quer comemorar/Umbabarauma homem-gol".

Tim nos ensina, fundamentalmente, como é viver sem fronteiras, se é que você me entende, cara operadora?

E para juracizarmos juntos, fresteiros e festeiros, concluo com uma provocação e uma proposta.

Não é hora de mudarmos o nome do nosso estádio?

Por que, cargas d'água, homenagear uma pessoa que não tem vínculo nenhum com a nossa história ludopédica?

Será que não é o momento de juracizar essa ideia?





Comentários

  1. Que maravilha, lindissima homenagem ao juraci Tim. Obrigada Gustavo Barreto pelo belo texto. Amamos muito.

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  2. Merecidissimo a homenagem ao nosso conterrâneo TIM👏Parabéns Gustavo Barreto, Belo texto🙌

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  3. Parabéns a meu grande amigo de infância e craque de bola Tim!

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  4. Caramba!
    Você está escrevendo muito bem.
    Tem leveza,
    tem humor,
    faz história ao registrar essas pequenas e grandes coisas hahaba
    Sofisticado e simples como Cartola, sem prepotência e exagero.
    Parabéns Gustavinho meu querido.
    Pena que antes de crítico literário, sou seu amigo, assim vc não deve levar em muito conta minha opinião. De qualquer forma, brincadeiras a parte, o talento te capturou sem piedade.

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  5. Um salve ao Juraci, ao amigo Gustavo Barreto e ao futebol miúdo que na sua grandeza nos salva da mesmice. Abraço do Michel Yakini-Iman.

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  6. Merecido a homenagem a você TIM 👏🏻👏🏻 o BETÃO (em memória)Concerteza deve estar feliz lá onde ele está 🙏

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  7. Meu amigo Gustavo, amigo de alma mas distante no espaço e no tempo. Fico orgulhoso ao ver como vc escreve e me desperta a vontade de aprender driblar, mas esse é um sonho de ser artista.

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