Feios, sujos e malvados



Nos anos 80, em Gastão Vidigal, a minha Macondo, um grupo de bêbados caricatos perambulava em busca de trabalho. Heróis anônimos de um tempo empoeirado, eram exímios trabalhadores de mãos calejadas: pedreiros, eletricistas, carpinteiros do universo e uma infinidade de outras artes da construção civil. 

Eram rechaçados pela sociedade, em virtude do deplorável estado que adquiriam, depois de doses cavalares de álcool. Viviam na penúria. Quem tiver a oportunidade de ler o conto "Cemitério de elefantes", do vampiro curitibano Dalton Trevisan, compreenderá a verossimilhança. Viviam à margem da sociedade, como os personagens elefantes do conto: "escarrapachados sobre as raízes que servem de cama e cadeira". "A viração da tarde assanha as varejeiras grudadas nos seus pés disformes." 

A saga dos "bêbados elefantes" converge com a dos nossos "feios, sujos e malvados" de Gastão Vidigal. Abandonados pelo Deus-mercado, sobreviviam ao Deus dará. E, como quem sorri da própria dor, entoavam em coro: "Deus dá o frio conforme o cobertor".  

Parafraseando o Xico Sá, "se a vida dói, drinque caubói". 

Eis então que o acaso — esse roteirista forjado no esmero — lhes abre uma fresta. Um fazendeiro surge, oferecendo trabalho em terras pantaneiras. No latifúndio dos dramas humanos, o grupo agarrava a oportunidade, feito um arqueiro na última cobrança de pênaltis. 

Mas havia uma condição: afastar-se da “mardita pinga”. E, nos idos 80, quando normas de segurança eram mais lenda que prática, foram todos embarcados - isso mesmo que você imaginou - na própria carroceria do caminhão. 

O condutor do veículo, designado para desempenhar a nobre missão, foi um caminhoneiro conhecido da pequena e pacata cidade de Gastão Vidigal. Reconhecido no universo rústico dos caminhoneiros, pela alcunha de Cidão Barreto, o destemido caubói era uma lenda viva. Conhecido na urbe pelo seu caminhão, indo e "voltando, de faróis baixos e para-choque duro". 

Era a primeira viagem do destemido caubói, executando duas funções: conduzir o veículo e inspecionar o burlesco grupo. Logo no embarque foi realizada uma minuciosa revista. Foram checados todos os pertences sob os olhares, nada amistosos, dos personas. 

O fazendeiro advertiu o caminhoneiro, "nada de paradas, em hipótese alguma". Qualquer parada representava uma ameaça à moral e aos bons costumes da trupe. Uma inocente ida ao banheiro, num posto de gasolina, poderia resultar na compra de um litro de água de Salinas e adjacências. 

Tudo ia muy bien, nesta longa estrada da vida, até que Cidão Barreto ouve uma algazarra vindo da carroceria. Os gritos eram ensurdecedores. 

"Pelo amor de Deus, hombre, precisamos urinar", clamou em voz alta, um dos homens. 

Cidão, com o coração largo como a boleia, parou. Mas desconfiou. Interrogou-os com a autoridade de quem carrega nas costas não apenas homens, mas, sobretudo, histórias. 

O sujeito argumenta, "mesmo com toda cédula, com toda célula, com toda súmula, com toda sílaba, a gente vai levando, a gente vai tocando, a gente vai tomando". 

O nosso "Pedro" (personagem interpretado por Antônio Fagundes, no seriado Carga Pesada), bem curioso, quis saber como esconderam a cachaça. A resposta veio na lata. Foi camuflada na mangueira de nível e estocada também em garrafas térmicas de café. Cidão Barreto, resignado, acendeu um Continental e seguiu avante, cantarolando na boleia ao som de João Mineiro e Marciano. 

Quando chegaram em terras pantanenses, mais um episódio epopeico dos cavaleiros da Távola Redonda. Novamente gritos na caçamba do Mercedão. Cidão dá aquela clássica passada de dedos no bigode e sussurra, "Vixe Maria, lá vem". Mal deu tempo de estacionar o caminhão no acostamento e os homens pularam da carroceria. 

Correram em romaria para dentro de uma mata densa. O caminhoneiro, em seus devaneios, fantasiava jaguatiricas e porcos selvagens. Tinha apelado, inclusive, para todos os santos canonizados pela Igreja Católica. Até que, como personagens de um cordel, retornam triunfantes: carregavam um tatu-canastra colossal, com quarenta quilos de pura bravura. 

Nessa mesma jornada sertaneja, um dos caçadores de tatu cruzou destino com um jacaré escondido numa poça silenciosa. O réptil, guardião das águas rasas, cravou-lhe os dentes na batata da perna, rompendo a carne como um sulco. Impávido, sem hospital por perto, ele recorreu, como antídoto, ao fumo de corda — bálsamo rústico dos camponeses — e sobreviveu. A partir de então, como num batismo agreste, passou a ser chamado de Jacaré, nome que o tempo, cúmplice obsequioso, sussurrou até o último sopro de sua existência. 

Ficaram dois meses no Pantanal e cumpriram a missão com fidedignidade. Na volta a cachaça foi liberada sem restrições. Os "feios, sujos e malvados" voltaram bebendo e cantando "Macondo, aqui me tens de regresso". 

CB também feliz da vida sonhava voltar aos braços de sua amada. No toca-fitas tocava repetidamente o Rei Roberto e sua indefectível marcha dos caminhoneiros: "quando chove o limpador desliza, vai e vem o para-brisa, bate igual meu coração, doido pelo doce do seu beijo, olho cheio de desejo, seu retrato no painel, é no acostamento dos seus braços, que eu desligo meu cansaço, e me abasteço desse mel, eu sei, tô correndo ao encontro dela, coração tá disparado, mas eu ando com cuidado, não me arrisco na banguela, eu sei, todo dia nessa estrada, no volante eu penso nela, já pintei no para-choque, um coração e o nome dela".  

Desfilaram na chegada da cidade, sentados na carroceria do caminhão, com o sentimento de dever cumprido, ostentando como troféu de guerra conquistado: o casco do valente tatu-canastra, relíquia pantaneira, tombado sem piedade.



Obs.: Dedico à crônica "feios, sujos e malvados" ao ilustre caminhoneiro retratado acima, que é o meu grande Pai, Aparecido Alves Barreto. Nas suas andanças pelo Brasil afora, sempre voltava com um belo causo na manga para me contar.

Comentários

  1. LINDA CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS,MAS FAÇO LEMBRAR QUE UM DOS "FEIOS SUJOS E MALVADOS" ERA MEU TIO CELESTINO, QUE HOJE ESTÁ NA MELHOR IDADE E NÃO BEBE MAIS NADA QUE CONTÉM ALCOOL...DEIXANDO MAIS PARA O SOBRINHO REVERSON E SEU CUNHADO GUSTAVO QUE ESCEVEU ESTA CRONICA, "A GENTE VAI LEVANDO"...
    REVERSON

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  2. Uau,Gustavo. Que crônica mais cheia de graça!! Adorei!!! Que fofa sua dedicatória!!!

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  3. Oi Gustavo, linda a homenagem ao seu pai e a nossa cidade. Eu quase posso visualizar o Sr. Cido Barreto em seu caminhão com aquela paciência que parece até ser ilimitada. A impressão que se tem é que nada consegue tirá-lo do sério. Parabéns. Bjs!!!

    Meiri

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  4. Gustavo,
    Não foi nessa mesma saga que um dos caçadores de tatu enfrentou um jacaré em uma poça d'água? E que após ter sua batata da perna dilacerada pelo réptil, tratou-a com fumo de corda, passando a ser conhecido pelo singelo apelido de Juca-Jacaré... Ou foi em outra epopeia?

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    1. Bela memória, hein Panta! Pena que não te consultei antes de escrever a crônica. Foi nessa saga sim.

      Abraço velhão!

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  5. Odisséias de GV. Parabéns! Aguardamos as histórias do velho Mário!

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  6. Li num fôlego só a crônica “feios, sujos e mal lavados” tive o grande prazer de compactuar dessa grande figura aqui retratada a quem chamo carinhosamente de “seu Cido” ouso aqui manifestar minhas considerações a esse nobre homem que se fosse falar de suas prerrogativas não caberia nesse singelo agradecimento; Obrigado por me dar a honra de ser seu vizinho onde por muito tempo de minha infância pude contemplá-lo em suas idas e vindas na boleia de seu caminhão; essa nostalgia me fez relembrar muito minha infância que às vezes esquecidas pela correria da cidade grande.
    Att: Reginaldo Brandão


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    1. Obrigado meu amigo! Transmitirei a mensagem para ele.

      Abraço companheiro!

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  7. Também li num fôlego só Reginaldo! Ele está escrevendo muito bem e, assim, a leitura flui ... Parabéns pelo texto e pela dedicatória maninho!
    bjs

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  8. Grande Gustavo, mais uma vez abastecendo nosso imaginário com uma estória divertida e "etílica"...nosso paladar agradece!!!

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