Menino do engenho


Bar do Joaquim é um pitoresco boteco de Piraporinha, extrema Zona Sul de São Paulo.

A pichação, em cima da ponte, próxima ao bairro, retrata bem a realidade: "da ponte pra cá é tudo diferente".

Sim, cara pálida, do outro lado existe uma outra São Paulo. Aqui vivem os antípodas da Oscar Freire, Jardins e outros redutos segregacionistas da Paulicéia.

"A cidade não pára, a cidade só cresce, o de cima sobe e o de baixo desce, a cidade não pára, a cidade só cresce, o de cima sobe e o de baixo desce".

Joaquim é um comediante nato. Dois dedos de prosa com ele rendem boas doses de gargalhadas.

"Eu sou a nata do lixo, eu sou o luxo da aldeia, eu sou do Ceará".

Cearense, Joaquim é mais um dos migrantes nordestinos que vieram para São Paulo em busca de uma oportunidade melhor na vida.

Quando fui ao bar estava com alguns amigos, um deles, inclusive, trajava um uniforme de trabalho. Joaquim, ao notar a indumentária de trabalho, soltou essa pérola:
- Rapaz quando vejo uma roupa de trabalho assim me coço todinho, é uma coceira que me bole. -- Dá vontade de rasgar na faca um troço desse.

Parece o tio vagaba do "Big Jato". Tudo no plano verbal, galhofa de primeira, pois o cara é um guerreiro.

O aguerrido comerciante "nessa cauda, aberta em leque, me guarda moleque, de eterno brincar". Os versos do Ednardo, conterrâneo do Joaquim, que eram tocados na jukebox, ilustram bem o seu espirito lúdico, sua capacidade de brincar com o "Lego" da existência humana.

- Aqui só tem cerveja "canela de pedreiro", ressoou Joaquim.

- Ora bolas, que diabo é isso, Joaquim?

- Canela de pedreiro é cheia de cal, toda branca, pois é, aqui a cerveja só vem assim.

- Aqui é um bar de "famía", não tem bagunça e ninguém bule ninguém -- deixa bem claro o comerciante. 

Um determinado dia na sua infância, Joaquim passou muito mal. Depois de desfrutar de um banquete de barro, as lombrigas desceram.

- Os bichos estavam saindo pelo furico, rapá.

- Esse dia estava um sol quente da moléstia, daqueles de furar até o sovaco.

Foi colocado no grajau em cima de um jegue. A sua irmã, companheira da peraltice, foi colocada em outro jegue. Seriam conduzidos até o médico mais próximo da sua comunidade, Engenho Queimado.

- Não é que o jumento se engraçou com a jumenta e empacou.

Joaquim lembra com orgulho dessa época árdua da vida.

- Naquele tempo, arroz era tempero do feijão, rapaz, e papel higiênico era moita de mufumbo.

Quando resgata a infância, Joaquim recorre a outro conterrâneo, o Belchior. "Até parece que foi ontem, minha mocidade, com diploma de sofrer, de outra universidade, minha fala nordestina, quero esquecer o francês".

- Passa a régua na conta, Joaquim.

O cearense fecha a conta resgatando o grande Fagner, mais um ilustre conterrâneo.

"Eu só queria, que você fosse um dia, ver as praias bonitas do meu Ceará, tenho certeza, que você gostaria, dos mares bravios, das praias de lá, onde o coqueiro, tem palma bem verde, balançando ao vento, pertinho do céu, e lá nasceu a virgem do poema, a linda Iracema dos lábios de mel".

"João amava Teresa que amava Raimundo, que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili, que não amava ninguém. João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, Joaquim abriu um bar na Piraporinha -- e olha que maravilha de boteco -- e Lili casou com J. Pinto Fernandes, que não tinha entrado na história".

 

Comentários

  1. Meu caro amigo Gustavo, que "inveja boa" destas suas aventuras. Isso que eu chamo de se divertir enquanto trabalha, produzir enquanto goza o melhor da vida.
    Saudades, Bjs!!!

    Meiri Dalva

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  2. Gustavo, Gustavo, você está quase virando um vício de leitura, sua leitura de mundo e de Literatura são de um aconchego no mundo, meu amigo, que você nem imagina o tamanho!
    Beijo

    Fabi Legnaro

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  3. Obrigado pela segunda e terça-feiras regada a muitos risos e cachaças!!!! Parabéns Gustavão.

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  4. Resgatando Fagner, lembrei-me desta música "Dezembros"...

    "Nunca mais a natureza da manhã
    E a beleza no artifício da
    cidade
    Num edifício sem janelas,
    desenhei os olhos dela
    Entre vestígios de bala
    e a luz da televisão
    Os meus olhos tem a fome do horizonte
    Sua face é um espelho sem promessas
    Por dezembros atravesso
    Oceanos e desertos
    Vendo a morte assim tão perto
    Minha vida em suas mãos
    O trem se vai na noite sem estrelas
    E o dia vem,nem eu nem trem
    nem ela

    Nunca mais a natureza nunca mais..."

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