Deixe a menina


Cada vez mais eu percebia a tristeza estampada na face de Altamiro. Pobre rapaz! Os sonetos de Camões fluíram inadvertidamente no coração da desafortunada criatura. "Amor é fogo que arde sem se ver; é ferida que dói e não se sente; é um contentamento descontente; é dor que desatina sem doer".

Altamiro era casado com Carolina. Os dois eram meus companheiros de samba. Frequentávamos o barracão da escola de samba da Portela. Cumpríamos nosso ritual todas sextas-feiras; batíamos cartão por lá, essa que é a verdade.

Conheceram-se numa tarde de domingo, num ensaio para  a "ofegante epidemia que se chamava carnaval". Depois que se conheceram, Altamiro em suas bebedeiras vespertinas, sempre parafraseava Bebeto: "eu encontrei a Carolina, aquela menina linda que me fez sonhar, naquela tarde de domingo, quando me perdi no seu olhar, perdido de amor por Carolina, sozinho pelas noites eu vaguei, só depois de tanto tempo, menina Carolina eu te encontrei, ai ai ai ai sou feliz e agora vou cantar, ai ai ai ai eu vou amanhecer no azul do teu olhar, ai ai ai ai e como vai ser lindo a gente se amar".

Carolina era uma eminente pé-de-valsa. Levitava na passarela do samba. Altamiro não ficava para trás. Foi criado no samba e do danado do samba nunca se separou. Não era "ruim da cabeça ou doente do pé"; gingava muitíssimo bem. Era um malandro com molejo nas cadeiras. Eleitos dos deuses.

Com o passar dos anos, Altamiro perdeu o ímpeto de sambar. Frequentava o barracão da escola de samba com assiduidade, mas ficava inerte no seu canto. Degustava o seu habitual Steinhaeger, de olhos bem abertos, vendo Carolina sambar.

Há tempos que percebia a desolação de Altamiro e num certo dia, no começo do samba, chamei-o para uma conversa particular. "Não é por estar na sua presença, meu prezado rapaz, mas você vai mal, mas vai mal demais, são dez horas, o samba tá quente, deixe a morena contente, deixe a menina sambar em paz".

Altamiro estava endiabrado. Ciúme mórbido! Não se conformava em ver a morena sambar e seu corpo todo balançar. O moço estava de lascar, estava de doer, com aquela cara de marido, que se a Carolina visse, era capaz de se aborrecer.

Adverti-o que "por trás de um homem triste há sempre uma mulher feliz, e atrás dessa mulher mil homens, sempre tão gentis, por isso para o seu bem, ou tire ela da cabeça ou mereça a moça que você tem".

O samba estava intenso, Carolina deslizava na pista e Altamiro com "seus olhos embotados de cimento e lágrima", no mais profundo e absoluto desalento. Já eram 3 horas da manhã e o jovem mancebo na miesma mierda. A cena me entorpecia a alma. Repeti o meu discurso, o que o deixou mais irritado. Altamiro "aqui ninguém o aguenta mais, são três horas, o samba tá quente, deixe a morena contente, deixe a menina sambar em paz".

Às seis da matina já estávamos pra lá de "Bagdá" e, como preza um bom bêbado, sussurrei pela enésima vez o meu mantra manjado. "Não é por estar na sua presença, meu prezado rapaz, mas você vai mal, mas vai mal demais, são seis horas o samba tá quente, deixe a morena com a gente, deixe a menina sambar em paz". 

Proferi a frase e esperei pelo tsunami de impropérios, mas o meu velho e indivisível amigo, como um sábio resignado, soltou o epílogo da alvorada: "lá fora, amor, uma rosa nasceu, todo mundo sambou, uma estrela caiu, eu bem que mostrei sorrindo, pela janela, ah que lindo, mas Carolina não viu..."

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Comentários

  1. amei esse texto. tá na hora de escrever estes contos em livor e fazermos o lançamento.

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    Respostas
    1. Olá Marcelo, tudo bem companheiro?

      O projeto é para o ano que vem Marcelo. Com certeza irei te acionar.

      Abraço!!

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