Sonho de um caminhoneiro

A crônica é uma adaptação da música "Sonho de um caminhoneiro", da dupla Milionário e Zé Rico. É também uma homenagem ao meu Pai, Aparecido Alves Barreto e ao seu grande amigo, "in memorian", Sebastião Vilerá (Tiãozão).


O meu pai caminhão, minha mãe solidão

Cidão Barreto e Tiãozão eram "dois amigos inseparáveis lutando pela vida e o pão".

Amigos de infância -- unidos pela cumplicidade e pelo mesmo ofício. A baixa escolaridade foi impiedosa... não deu escolha. O registro, na carteira de trabalho de ambos, autenticava o destino: Caminhoneiro.

Viviam na lida, com as migalhas da mais-valia. Todo poder a imaginação. Idealizavam abolir o aforismo, "bônus do patrão, ônus do empregado".

Na boléia do caminhão levavam "um sonho de cidade em cidade, de serem donos de seu caminhão".

Um determinado dia, depois de encerrado o expediente, degustavam um Fernet com licor de cacau, no Botequim do Zé Bettio. Um indagava o outro, "como beber dessa bebida amarga, tragar a dor e engolir a labuta?”.

Foi o estopim. Fizeram um pacto e uma aliança jurada para eternidade. A confiança extrapolava o conceito clássico de amigos e a partir daquele momento seriam sócios também.

Amigos de fé, irmãos camaradas, amigos de tantos caminhos, de tantas jornadas.

Compraram a parcelas de se perder de vista, um Mercedes 1113. "Com muita luta e sacrifício para pagar em dia a prestação".

"Bye bye, so long, farewell" aos coronéis da casa-grande. "Se realizava o sonho finalmente, o empregado passa a ser patrão". Sempre "em busca do pão pra sustentar os seus, tentando esconder a emoção no momento do adeus".

"Suas viagens eram intermináveis de cansaço, de poeira e chão", mas sempre agradecidos a Deus, pela aquisição do potente Mercedão.

Cidão Barreto sempre dizia que conhecia o Brasil, do Oiapoque ao Chuí, "eu conheço todos os sotaques desse povo, todas as paisagens, dessa terra, todas as cidades, das mulheres todas as vontades, eu conheço as minhas liberdades, pois a vida não me cobra o frete".

Tiãozão tirava onda do Cidão com todo esse proseiro, mas não continha a emoção quando o amigo desabafava, "mas quando eu me lembro lá de casa, a mulher e os filhos esperando, sinto que me morde a boca da saudade, e a lembrança me agarra e profana, o meu tino forte de homem, e é quando a estrada me acode".

O amigo Tiãozão ficava enternecido, pois era "recém-casado e ia ser pai do primeiro varão".

Enquanto isso no caminhão, o ventilador trabalhava incessantemente, espalhando a saudade por toda a boléia.

Um dia após chegarem de uma viagem, transportando café para Neves Paulista, pararam no Botequim do Zé Bettio para saborear uma cerveja.

O contentamento estava estampado no rosto de Tiãozão e este fumava excessivamente, tragando a fumaça do regozijo.

Depois de um bom tempo, com o álcool transcendendo os poros, Tiãozão convidou o amigo para ser padrinho do filho, prestes a nascer.

Todos os freqüentadores do botequim brindaram. Cidão, efusivo, deu um "tapão gordo" no amigo, numa daquelas brincadeirinhas típicas de caminhoneiro.

Depois encerraram a conta e foram para casa, pois de madrugada iriam pegar no batente. Estrada volver.

O outro dia foi longo, teriam que chegar até o final da tarde no Mato Grosso para descarregar a carga.

Os dois amigos inseparáveis, que lutavam pela vida e o pão, alternavam no volante do 1113. Quando um dirigia, o outro, descansava.

A carga era pesada, como também era a rotina de ambos, mas esse fardo que carregavam era encarado com alegria.

"Com alegria vinham pela estrada não vendo a hora de chegar".

"Mas o destino cruel e traiçoeiro marcou a hora e o lugar. A chuva fina e a pista molhada com uma carreta foram se chocar".

O destino cruel e traiçoeiro foi impiedoso, "mas como todos tem a sua sina, um a morte não levou e agonizante nos braços do amigo disse: vá conhecer meu filho, porque eu não vou".

Cidão Barreto não resignou-se. Tentou de todas formas reanimar o amigo, que nos seus braços dava o suspiro final.

Um triste epitáfio registraria a dor e a angústia do amigo sobrevivente.

"Naquela curva a beira da estrada, uma cruz ao lado do pinheiro marca pra sempre onde foi ceifada a vida e o sonho de um caminhoneiro. Com a morte do companheiro a saudade vai chegar. Aqueles bons e velhos tempos nunca mais irão voltar".

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Comentários

  1. Nossa Gustavo, eu não conhecia esta estória da vida do seu pai não, mas eu acho que me lembro daquele caminhão da foto. Realmente a vida da voltas incríveis né....Bjs!!!

    Meiri

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  2. Mais uma bela crônica, tematizada na vida real e enriquecida por citações e paráfrases costumeiras extraídas da Música Popular Brasileira aí nesse seu estilo bem particular de narrativa; conferindo qualidades poéticas e humor ao texto. Bacana mesmo !!!

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  3. Bela adaptação da música "Sonho de um caminhoneiro", onde a ficção se funde a realidade! Criatividade é a palavra!
    bj

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