O segredo dos seus olhos


Deixa eu sentar e beber uma cerveja pro meu corpo ficar odara. 

Sim, abstêmio leitor: "minha cara, minha cuca ficar odara".

Socraticamente às avessas, nada sei, só sei que alguma coisa acontece no meu coração de cedro, que só quando cruza a Rodésia e a Mercearia São Pedro.

"Una birra, per favore", soletro em tons garrafais -- peço perdão pelo infame trocadalho, como diria o anti-herói Zeca, do Pornopopeia -- o meu mantra preferido.

Tarde efervescente na Paulicéia Desvairada. Sol de rachar. Parafraseando um conterrâneo: "tempo bom pra capinar um terreno".

O vozerio ensurdecedor se propaga em mil tons geniais pela taberna, afastando do páreo qualquer britadeira que se preze, que próximo dos decibéis emitidos, a rebaixaria ao reles cargo de batedeira de bolo.

O que será que andam falando alto pelos botecos?

A resposta é traduzida pela sublime presença de uma tigresa de unhas negras e íris verdejantes.

Fico catalisado pelos olhos oblíquos e dissimulados, e notem, ainda sem ressaca.

Comendador Gerúndio, sentado à minha direita, não resiste e professa:
- Olaiá, vamos estar contemplando as beldades da natureza, meu caro.

Um gaiato, sentado à minha esquerda, batuca um sambinha martiniano na caixa de fósforos:
- "eu quero ser fotografado, mas pela retina dos seus olhos lindos".

Depois de concluir a cantilena, o gaiato me provoca: "você também gosta?" e solta um sorriso maroto, apontando com o dedo indicador a afrodite paulistana.

Entro na provocação, gorgolejo a cerveja e respondo na lata: "oxiiii", prolongando o sibilar da letra i.

O gaiato, indiferente à metalinguagem dos rincões vidigalenses, arrisca uma panorâmica de 360 graus, enfeitiçado pela retina perturbadora.

Levanto da mesa, com a destreza e sutileza de um lutador de sumô, e quase derrubo o garçom, que naquele exato momento, oferecia-me um pastel de carne.

Quando cruzo o balcão, elimino a segunda barreira e jogo pelo ares um exemplar da "A insustentável leveza do ser" de uma prateleira.

Destoando do título do livro, ainda derrubo mais um obstáculo, agora um alvejante, com uma etiqueta de R$ 2,99 fixada na tampa vermelha.

"Cansado, maltrapilho e maltratado" chego na reta final.

tigresa de unhas negras e íris verdejantes avança pela porta do banheiro, ignorando uretras exasperantes, que aguardavam estoicamente na fila.

Era como se aqueles lindos olhos tivessem um "green card". Ou, simplesmente, um "sem parar" instalado nos sapatos, que pudesse afastar do caminho, qualquer uma que ousasse desafiar a sua beleza.

Os magníficos olhos avançavam "os sinais vermelhos, e perdem os verdes, somos uns boçais".

Volto para mesa, com três S: sem norte, sem prumo, sem rumo.

Trago comigo um andar macambúzio. No meu encalço, a mercearia é coberta, inesperadamente, por uma densa bruma.

A felina dissipa na névoa, deixando rastros em todos nós, ocasionando, sobretudo, "a tristeza extraordinária do leopardo-das-neves", como no belo livro do Joca Reiners Terron.

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Comentários

  1. Fico imaginando aqui meu caro amigo: como é que pode, três fenômenos femininos, inspirarem tanto um assim um escritor a executar uma sinfônica verbética, como faz você, a nos laurear com essa bela crônica? Mais uma vez...Parabéns Gustavo!!

    Ah, por ordem: Tigresa, cerveja e...caneta!!!

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    Respostas
    1. Obrigado, Mauricio!

      Temos que articular um encontro na Mercearia para comemorar o "Legião de palavras".

      Grande abraço!

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