Epifania 244: Parte 1



Capítulo Um
Os personagens


“Em suma, não me insultem com decapitações, decepações de dedos ou esvaziamento de pulmões que pretendam fazer em minhas obras. Preciso de minha cabeça para rejeitar ou assentir, minha mão para saudar ou fechar em punho, meus pulmões para gritar ou sussurrar. Não irei gentilmente para uma prateleira, eviscerado, para me tornar um não-livro”.


Fahrenheit 451
Ray Bradbury


“Não consegui chegar a nada, nem mesmo tornar-me mau: nem bom nem canalha nem honrado nem herói nem inseto. Agora, vou vivendo os meus dias em meu canto, incitando-me a mim mesmo com o consolo raivoso – que para nada serve – de que um homem inteligente não pode, a sério, tornar-se algo, e de que somente os imbecis o conseguem”.


Memórias do subsolo
Fiódor Dostoievski



Velho Buk

Estacionou o seu Del Rey Ouro, com rodas de liga leve, quatro portas, ao lado do bar e desceu com a fragosidade costumeira. Bar Epifania Áurea, Rua Abolição, número dois, quatro, quatro, Centro de São Paulo.
Desceu como se o dia não fosse findar, vagarosamente, contemplando a atmosfera ácida do entardecer. Saía do trabalho e dirigia-se com pontualidade britânica à taberna. Ali realmente começava o seu dia, propriamente dito.
            A de sempre, Velho? – indagou Osório - expelindo ruidosamente uma baforada desagradável do seu cigarro sem filtro.
            Não. Muito obrigado Osório, me vê, por gentileza, um corte de tecido para eu fazer um vestido, seu cretino. – respondeu o Velho, com o seu sorriso recheado de escárnio.
Lembrou-se da crônica do Drummond e esboçou outro sorriso, engolindo com sofreguidão o uísque.
Tem visto a Adélia?
Velho Buk, faz um bom tempo que não a vejo. Parece que ela abandonou a profissão. É o que dizem. Falar até papagaio fala, você sabe, não é? – retrucou Osório.
Nunca mais a vi. Tenho peregrinado pela Augusta, Boca do Lixo, República e nenhum sinal da ordinária. Será que se esqueceu do Velho Buk, a minha Lolita?
Na minha terra dizem que não existe ex-puta, nem ex-viado – troçou o taberneiro, com o seu acentuado sotaque nordestino.
Renovado, vívido, o Velho pediu mais uma dose.

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