Epifania 244: Parte 11


Eleonora

Jair era um sujeito esguio, um metro e oitenta e nove centímetros. Fios esparsos de barba, distribuídos irregularmente pelo rosto, e um bigode exótico, conferiam-lhe uma excentricidade peculiar.
A pele alva avultava exponencialmente o escarlate da calvície. Trajava de segunda a sexta o uniforme do prédio. Nos finais de semana, bermuda, camiseta regata e chinelão de couro.
Longas olheiras denunciavam noites mal dormidas. As bolsas circundando os olhos lembravam as bolsas das moradoras do prédio. Geralmente chegavam balançando as bolsas no balcão. Perguntavam se a encomenda não tinha vindo ainda. Mas como? Jair, você checou a caixa de correio? Você fica o dia todo nesse radinho e não verifica se chegaram as mercadorias – desabafavam as malogradas inquilinas.
Dava vontade de mandar às favas. Respirava fundo. Lembrava das recomendações médicas. Aspire, respire.
Ganhava modestamente e vivia numa casa bem confortável. Se por acaso perdesse o emprego, tinha umas economias guardadas. Mas era difícil arrumar outro emprego.
O mercado de trabalho está cada vez mais exigente, anunciava a manchete do jornal. E depois dos quarenta, piorou. Tudo culpa da bolha financeira, comentou o analista econômico.
Para Jair, bolha era somente uma brincadeira de infância. Caneca de alumínio na mão, cheia de sabão diluído e o invólucro da caneta para espalhar a bolha. Segundo o pai, em outros tempos, o canudo era feito com talo da folha do mamão. Película fina de água e sabão. "Sentado na calçada, de canudo e canequinha, dumplec duplim, eu vi um garotinho, dumplec duplim, fazendo uma bolinha, dumplec duplim, bolinha de sabão".
Eleonora? Sim, é uma linda mulher. Mas se quiser vir para cá terá que se submeter às minhas regras. Idealizava um sistema, feito um filósofo político. O reino despótico do lar.
Em casa, mando eu. Amarfanhado em próprio território. Uma ofensa – Jair ponderava sistematicamente, tecendo os fios do metódico sistema.
Lavar as minhas roupas. Fazer a comida. Trocar os lençóis. Limpar o quintal. Dar banho no cachorro. Deixaria a lista das obrigações cotidianas na geladeira. Sempre sonhou com isso.
Machista? Sou nada. É simplesmente uma relação de trocas. Antigamente chamavam-na de escambo. Bem melhor que viver no cortiço – proclamava Jair, com o semblante tirânico.
Eleonora pensava estrategicamente como abordar Jair. Refletia como um jogador de xadrez. Calculando meticulosamente cada jogada. Esperaria o momento exato de anunciar, como um mensageiro, o xeque-mate.
Projetava em Jair uma alternativa palpável, porém, de um modo despretensioso. Não abdicaria das suas vontades. Quando o instinto aflorava, o superego a censurava.
Com a ausência dos patrões, Eleonora entrou na alcova do casal. Deitou na cama Box e imaginou uma vida recheada de luxo. Se ganhasse na loteria, poderia ter uma vida pautada por ostentações: mas como ganhar, se nunca jogava?
Habitaria na opulência. Carro importado. Vinhos franceses. Motorista particular, aliás, chofer. Uma nomenclatura mais elegante. Comeria caviar todos os dias. Caviar? Nem sabia exatamente o que era.
Sonhou e depois emitiu um grito gutural na sacada do apartamento, expelindo a excrescência que angustiava o peito. O grito tinha efeito terapêutico. Concebia no grito a ruptura da dor existencial.

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