Epifania 244: Parte 14


Capítulo Quatro
A sobrevivência

"Sentado junto ao fogão, em atitude de confiada e inocente expectativa enquanto o café não fervia, o Coronel como que sentiu brotar de suas tripas cogumelos e lírios malignos. Era outubro. Eis uma manhã difícil de vencer, esta, mesmo para um homem de sua fibra, sobrevivente de tantas outras manhãs".

Ninguém escreve ao Coronel
Gabriel García Márquez


Velho Buk

Velho Buk acordou cedo e pensou nos trâmites burocráticos que teria que resolver, oriundos do processo de separação de Isaura. Postergou ao máximo, mas foi advertido pelo advogado das consequências penais decorrentes da sua ausência nas audiências.
Não poderia mais transferir o problema. Tinha consciência dos desdobramentos. Foi recalcitrante mais por desleixo. Abdicou de bens, sem temeridades. Evitava encontrar Isaura.
Sabia que Isaura sofria pela dissolução do casamento, por isso temia revê-la brevemente. A intenção do Velho era resistir ao máximo, até cicatrizar as feridas do divórcio.
Fez um café e procurou pela casa o maço de cigarros. Todo dia era exatamente esse o enredo. Nunca encontrava o cigarro. Procurou por todos os cantos do apartamento. Foi encontrá-lo no cesto de roupas sujas, no bolso da camisa azul. Foi até à sacada e ficou contemplando os transeuntes na avenida.
Pessoas que se cruzavam no fluxo contínuo da calçada. Como La Mettrie, via autômatos. E se sentia vivo. Pensou novamente em Isaura. Dois mundos antagônicos. Um muro dividindo duas pessoas.
Lembrou do frigir dos ovos. Isaura preparando com afeto o café da manhã. Velho Buk tomava o café e depois comia os ovos a contragosto. No princípio, relutou. Argumentou que não tinha o hábito de se alimentar de manhã. Tentativas frustradas. Isaura era renitente. Velho Buk com o tempo tomou gosto.
O telefone tocou três vezes. Velho Buk compenetrado nos seus devaneios, não se atentou. Na quarta tentativa o telefone foi, enfim, atendido. Era o advogado de Isaura. Saudações cordiais foram abolidas.
Você sofrerá as consequências. A justiça será implacável – arguiu o advogado de Isaura, completamente irritado.
Por que você não compareceu? Quais as suas reais intenções? Tem consciência da sua omissão?
Os pontos de interrogação converteram-se em hastes pontiagudas, lançadas ao seu encontro. Buscou se desvencilhar. Nada.
Um maço de cigarros foi pouco. Tomou um banho frio para relaxar e desceu até a lanchonete mais próxima, em busca de seu Hollywood.

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