Epifania 244: Parte 3



Eleonora

Ouviu com atenção, em frente ao Teatro Municipal, o artista mambembe. Escutava estoicamente, como se o mundo fosse acabar, exatamente naquele dia. O artista contava que quando nascia uma criança, em Esparta, pendurava-se uma fita de lã na porta da casa, simbolizando o nascimento de uma menina. Havia ritos e o reconhecimento da filha pelo pai.
Eleonora pensou no pai, que a abandonou. Foi criada pela mãe e pelos irmãos mais velhos, morando precariamente em cortiços no Centro da cidade.
Puta que pariu, que moral é essa, imposta a nós, meu Deus? – berrava a mãe de Eleonora – depois de ingerir uma garrafa de cachaça, aplacada pelo odor acre do cortiço, próximo da Estação Júlio Prestes.
O amargor era o brinquedo preferido de Eleonora na infância. Minto. Não era o favorito. A questão nunca dependeu de escolhas. O destino jamais fora questão de alternativas. Escolhas. Não se escolhe o destino, como se escolhe roupas para sair. Necessidade, desejo. Necessidade, vontade. Não era apenas a estrofe de uma música.

Velho Buk

O quartel-general do Velho era o Epifania Áurea. Frequentava todos os dias, sem exceção. A sua mesa fora imortalizada. Quando algum desavisado sentava-se à ela, logo era advertido por Osório, ou por qualquer outro frequentador.
Depois que divorciou de Isaura, a rotina do Velho era essa. Trabalho, Epifania. Epifania, casa. Morava próximo. Avenida São Luís. A situação era confortável. Nunca passou por adversidades. O seu lar sempre foi o botequim. Foi eterno enquanto durou. Durou até demais: o matrimônio.
Isaura foi alertada pelas amigas. Pela família. Amigos do Velho. Vizinhança. Todos. A vida do Velho era um livro de páginas abertas. O livro do Velho não constava no “Index Librorum Prohibitorum”. Em qualquer botequim engordurado do Centro da cidade era possível encontrar um exemplar. Público e notório.
O desfecho foi um martírio para Isaura. Para o Velho, uma dádiva. O saldo final foi uma filha. A bela Beatriz. Bia, assim chamada, carinhosamente, pelos pais e amigos.
Isaura ficou com o apartamento em Pinheiros. Velho Buk, com o apartamento da São Luís. Amplo demais para as suas pretensões. O seu cotidiano consistia em botequins e cabarés. Um “bon vivant”.
Em pleno arrebatamento da dissolução, Bia mudou-se para Gastão Vidigal, noroeste do Estado. Casou e foi acompanhar o marido, engenheiro químico, na sua cruzada pelo interior. O distanciamento era um alívio. Estava sentindo-se asfixiada. Atolada no lodaçal dos murmúrios maternos.
Para o Velho Buk nada mudava. Pelo contrário. Alicerçava um mundo mais promissor. Cosmopolita. Sem fronteiras ou barreiras para a devassidão.

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