Epifania 244: Parte 4


Heitor

A pensão na Rua dos Gusmões era literalmente uma espelunca. Fétido era o pensionato: mas os comensais também eram. O jantar era uma agonia. A acidez tomava conta do seu estômago. A profusão do cheiro dos moradores penetrava no âmago. Regurgitava e lembrava-se da mãe, na longínqua Bocaina.
      Bando de animais – murmurava de um jeito inaudível – pelo jeito nunca tiveram uma mãe.
      Rememorou a presença materna, resgatando a infância, quando iam até Jaú, que era a referência comercial mais próxima. Nessas ocasiões almoçavam em restaurantes, e a mãe fazia questão que ele comesse adequadamente com a boca fechada. Dizia que os atendentes eram policiais, cujo propósito ali era atendê-los e prendê-los, se porventura cometessem a infração, nas palavras dela, de comerem com a boca aberta.
       No banheiro, a inscrição, “aqui o filho chora e a mãe não vê”, evocava a mais remota reminiscência materna.
     Voltar para Bocaina era fora de cogitação. Enfrentou heroicamente os desígnios impostos pela selva de pedra. Trabalho contumaz.
Empunhava a enxada com a fúria dos titãs e engolia a seco as humilhações na construção.
Só a aguardente aliviava o estômago no crepúsculo cinzento de São Paulo. De volta ao pensionato, esfregava o pau no banheiro, como se esfregasse a lâmpada maravilhosa de Aladim. A fricção dava a sensação paliativa de poder escolher o norte.
      Um dia, golpeou o companheiro de quarto com três canivetadas. “Caipira é a mãe, filho da puta”. Irineu arfava no leito. Foi internado na Santa Casa em estado grave.
      Nada mais foi como antes. “No princípio era o verbo. Hoje não. A partir de hoje é a valentia. Heitor, ao seu dispor”. Sim, agora conheciam o verdadeiro Heitor.
     Nas cartas endereçadas à mãe, só se gabava. Escondia as verdades. No cerne, o furor da falácia era virulento. Expelia pela latrina as angústias.

Comentários