Epifania 244: Parte 5


Eleonora

O trabalho de faxineira era uma humilhação constante para Eleonora. A questão da invisibilidade social era evidente. Pensava numa forma de vingança. Sonhava acordada. Realidade onírica degradante. Ganharia na loteria e usaria o mesmo artifício. Humilharia também.
Lembrou com ódio do pastor, que pregava embaixo de uma marquise, em frente ao Prédio dos Correios, “olho por olho, e dente por dente, eu, porém, vos digo: não resistais ao homem mau; mas a qualquer que te dá na face direita, volta-lhe também a outra”. Jamais agiria assim.
Dona Úrsula nem bom dia dava. A lista exaustiva dos afazeres estava fixada na geladeira. Nunca falhava. Seu Hernandes era o único a cumprimentá-la. Era um bom dia seco. Econômico. Enxuto. Os filhos do casal desde cedo aprenderam a ignorá-la também. A herança genética e escravocrata.
Aquele trabalho a consumia, inteiramente; no entanto, era mais aprazível o emprego que as horas passadas no cortiço. A luta incessante por espaço no exíguo quarto. Os parcos recursos da família.
Um pingado, por gentileza – solicitou Eleonora, com uma expressão taciturna.
Só o pingado hoje, bonita? Não vai um pão com manteiga? – inquiriu o atendente da padaria, com um sorriso afável.
Hoje não. Muito obrigada! Acordei sem fome, querido – mentiu Eleonora, depois de revirar minuciosamente o bolso da calça.
As lágrimas chegaram sem avisar, como a água do cortiço que teimava em faltar e voltava, inesperadamente, depois da caridade de algum vizinho que, num esparso momento altruísta, resolvia quitar o permanente débito dos moradores.
A existência não carece de tanto sofrimento – pensou Eleonora, com a alma em chamas.
Lembrou-se do colégio de onde fugiu, sem concluir o ensino médio. Teve bom desempenho acadêmico no período que cursou, mas a indisciplina e a inflexibilidade a desviaram do caminho. Gostava das aulas de Biologia. Quiçá, hoje poderia ser uma bióloga ou uma professora.
Sempre foi rebaixada na vida. Um corpo reduzido, em processo de putrefação. Reduzida à metade, igual à meiose, como era explicada pela professora Clarissa, nas suas aulas de Biologia, no Colégio Estadual Adolfo Gordo.
Aflita, chegou ao edifício cabisbaixa e nem notou a presença de Jair, que se encontrava junto à caixa de luz, com a mão esquerda no quadril.
Bom dia, Eleonora! Quando iremos tomar aquela cerveja, linda? Conto as horas para chegar esse dia.
Jair, já te pedi mais de uma vez, me respeita, por favor. Tem um monte de coisas para você fazer, portanto, presta mais atenção e vai cuidar da sua vida! Estou cheia de problemas. Você merece coisa melhor.
A minha vida é a sua também, amor. Você é a minha cara-metade! Quantas juras de amor preciso fazer? Se precisar de ajuda, pode contar comigo. É dinheiro que você precisa? Desembucha, minha flor.
Eleonora, resoluta nos seus passos, ignorou o flerte e subiu pelo elevador social, sem olhar para Jair, que coçava com concupiscência o bigode.

Comentários