Epifania 244: Parte 6


Capítulo Dois
O tempo

"De tempo somos. Somos seus pés e suas bocas. Os pés do tempo caminham em nossos pés. Cedo ou tarde, já sabemos, os ventos do tempo apagarão as pegadas. Travessia do nada, passos de ninguém? As bocas do tempo contam a viagem".

Bocas do tempo
Eduardo Galeano
Velho Buk

O sangue avolumava-se. Jorrava com abundância, sem reticências. Espargia. Calafrios. O estômago revirava-se. A artéria carótida comum direita invadia, não pedia licença, entrava no quarto como uma invasora. Os tremores balançavam a alcova. Trepidava. O suor destilava através dos poros. Desertavam em pânico, como covardes desertores de uma guerra atroz e sanguinolenta.
O Velho acordou assustado. Dificilmente tinha pesadelos. Estava encharcado de suor. Tomou um banho gelado e desceu até à padaria para tomar um café.
Um expresso puro, meu chapa.
O que aconteceu? Ganhou na loteria? Está fácil, hein, não trabalha mais?
Curtindo o primeiro dia da minha aposentadoria dupla. Sem trabalho e sem mulher.
Isso que é vida! Um dia eu chego lá. – invejou o atendente.
Passou depois na banca instalada na Praça Dom José Gaspar. Comprou um jornal, acendeu um cigarro e ficou contemplando o trânsito frenético na Avenida São Luís.
Bom dia, Velho!
Ótimo dia, Ernesto. Excelente dia. Magistral dia. – o velho declamava, enquanto apertava o botão do elevador.
Isso que é vida! Um dia eu chego lá. – invejou o porteiro – repetindo o mesmo bordão do atendente da padaria, parecendo que todos, em qualquer parte do planeta, naquele mesmo horário, envoltos numa conspiração universal, estivessem de esguelha, cobiçando a vida do Velho.
Naquele dia leu os jornais com tamanha atenção, que se fosse na infância, quando cursava o colégio e, porventura, tivesse uma prova sobre o conteúdo do jornal, evidentemente, gabaritaria.
Leu as entrelinhas. Devorou os classificados. Mastigou o caderno de cultura. Absorvido pela leitura, esqueceu completamente da audiência que teria para resolver o desenlace do casamento.
Quando deu por si, o horário da audiência já tinha passado. O único compromisso formal desvaneceu da sua mente. Cumpriria, depois do ocorrido, a liturgia do outro compromisso, o mais importante. A visita ao Epifania Áurea.
Desceu o Viaduto Nove de Julho contando os passos. Descia como um condenado à morte, vagarosamente. Era uma condenação às avessas. Suprimia a ditadura do relógio.
Virou à direita, na Rua Santo Antônio, e logo após, à esquerda, adentrando a Rua Abolição, rumo ao duzentos e quarenta e quatro.
Procrastinava os passos.
Epifania Áurea, repetia consigo mesmo.
Que honra! Velho Buk, antecipando os trabalhos!
Osório me traz um duplo. Hoje, efetivamente, estou nascendo. Uma nova vida. Adeus trabalho. Adeus Isaura.
Velho, hoje colocarei no seu uísque um gelo feito com água de coco. O senhor irá gostar.
Gelo o cacete! O meu foi e sempre será caubói. Colocar gelo no uísque é coisa das tetéias dos Jardins. Aquelas bichanas que consomem poker, cerveja premium e cosméticos masculinos. Aqueles tipinhos que tem nojinho. Aqui no Centro não, Osório. É uma heresia!
Osório riu escandalosamente. Oferecera somente com o propósito da galhofa. Conhecia profundamente o Velho.
Nada da Adélia, Osório?
Não, senhor. Cheguei, inclusive, a falar com a Ana. Ninguém sabe do paradeiro dela. Talvez tenha voltado pra Minas.

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