Capítulo Dois
O tempo
"De tempo somos. Somos seus pés e suas
bocas. Os pés do tempo caminham em nossos pés. Cedo ou tarde, já sabemos, os
ventos do tempo apagarão as pegadas. Travessia do nada, passos de ninguém? As
bocas do tempo contam a viagem".
Bocas
do tempo
Eduardo
Galeano
Velho Buk
O sangue avolumava-se. Jorrava com abundância, sem reticências. Espargia.
Calafrios. O estômago revirava-se. A artéria carótida comum direita invadia,
não pedia licença, entrava no quarto como uma invasora. Os tremores balançavam
a alcova. Trepidava. O suor destilava através dos poros. Desertavam em pânico,
como covardes desertores de uma guerra atroz e sanguinolenta.
O Velho acordou assustado.
Dificilmente tinha pesadelos. Estava encharcado de suor. Tomou um banho gelado
e desceu até à padaria para tomar um café.
Um expresso puro, meu chapa.
O que aconteceu? Ganhou na loteria?
Está fácil, hein, não trabalha mais?
Curtindo o primeiro dia da minha
aposentadoria dupla. Sem trabalho e sem mulher.
Isso que é vida! Um dia eu chego lá.
– invejou o atendente.
Passou depois na banca instalada na
Praça Dom José Gaspar. Comprou um jornal, acendeu um cigarro e ficou
contemplando o trânsito frenético na Avenida São Luís.
Bom dia, Velho!
Ótimo dia, Ernesto. Excelente dia.
Magistral dia. – o velho declamava, enquanto apertava o botão do elevador.
Isso que é vida! Um dia eu chego lá.
– invejou o porteiro – repetindo o mesmo bordão do atendente da padaria,
parecendo que todos, em qualquer parte do planeta, naquele mesmo horário,
envoltos numa conspiração universal, estivessem de esguelha, cobiçando a vida
do Velho.
Naquele dia leu os jornais com
tamanha atenção, que se fosse na infância, quando cursava o colégio e,
porventura, tivesse uma prova sobre o conteúdo do jornal, evidentemente,
gabaritaria.
Leu as entrelinhas. Devorou os
classificados. Mastigou o caderno de cultura. Absorvido pela leitura, esqueceu
completamente da audiência que teria para resolver o desenlace do casamento.
Quando deu por si, o horário da
audiência já tinha passado. O único compromisso formal desvaneceu da sua mente.
Cumpriria, depois do ocorrido, a liturgia do outro compromisso, o mais
importante. A visita ao Epifania Áurea.
Desceu o Viaduto Nove de Julho
contando os passos. Descia como um condenado à morte, vagarosamente. Era uma
condenação às avessas. Suprimia a ditadura do relógio.
Virou à direita, na Rua Santo
Antônio, e logo após, à esquerda, adentrando a Rua Abolição, rumo ao duzentos e
quarenta e quatro.
Procrastinava os passos.
Epifania Áurea, repetia consigo mesmo.
Que honra! Velho Buk, antecipando os
trabalhos!
Osório me traz um duplo. Hoje,
efetivamente, estou nascendo. Uma nova vida. Adeus trabalho. Adeus Isaura.
Velho, hoje colocarei no seu uísque
um gelo feito com água de coco. O senhor irá gostar.
Gelo o cacete! O meu foi e sempre
será caubói. Colocar gelo no uísque é coisa das tetéias dos Jardins. Aquelas
bichanas que consomem poker, cerveja premium e cosméticos masculinos. Aqueles
tipinhos que tem nojinho. Aqui no Centro não, Osório. É uma heresia!
Osório riu escandalosamente.
Oferecera somente com o propósito da galhofa. Conhecia profundamente o Velho.
Nada da Adélia, Osório?
Não, senhor. Cheguei, inclusive, a
falar com a Ana. Ninguém sabe do paradeiro dela. Talvez tenha voltado pra
Minas.
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