Heitor
Foi encaminhado para o Terceiro Distrito Policial, na Rua Aurora. Réu
primário foi liberado rapidamente, sob o pagamento de fiança. Alegou legítima
defesa.
Irineu ficou internado uma semana na
Santa Casa. Quando recebeu alta não retornou ao pensionato. Deixou os pertences
na pensão, como se a partir daquele momento apagasse o passado.
As memórias seriam conjugadas no pretérito
e ficariam guardadas na gaveta da escrivaninha do esquecimento. Irineu caminhou
até a Estação Luz. Comprou um bilhete do trem com um ambulante, que anunciava
radiante os seus produtos.
Passou pela catraca com agilidade,
feito um escravo que consegue fugir do feitor. Eram dez horas da manhã. O
movimento na estação era tranquilo. Sentou numa poltrona e comprou o primeiro
chocolate que foi oferecido. Perguntou se não era amargo.
De amargo chegava a cicatriz, que o
acompanharia até o leito de morte. Marcas indeléveis do passado.
O pouco tempo que Heitor passou na
cadeia foi suficiente para estabelecer contatos com outros detentos. Conexão
com o mundo do crime.
Heitor, ao contrário de Irineu,
voltou ao pensionato. Não pisou na tecla que suprime os resquícios do passado.
Exatamente o oposto. Queria ressaltar o feito.
Passaram a respeitá-lo. Imaginou que
era um publicitário, difundindo o seu gesto para toda urbe. Sonhou até com o
mote. Quem sabe uma epígrafe de um livro. O livro da sua vida, cujo título
seria estampado em alto relevo, "Heitor: o sanguinário".
Continuou trabalhando na construção
civil, mas pretendia atuar como ambulante. No mercado informal ficaria de olho,
como as câmeras que monitoravam o Centro, em busca de uma atividade ilícita.
Venderia os seus produtos e atuaria pela
surdina. Volteios. Negócios escusos. Candeia deu a sua palavra. A palavra no
mundo do crime tinha um valor imensurável. Heitor confiou. Aguardava, como um
agricultor espera a chegada do período de chuvas para o início do plantio.
Heitor fazia a barba no pensionato, enquanto
olhava no espelho o rosto alterado. As feições análogas ao Bisavô lembravam um
retrato do século dezenove, reproduzido por um daguerreótipo.
Pertencia a uma linhagem espartana, de
homens pouco propensos às palavras. Monossilábicos. Habituados a não trepidar no
exercício da ação. Quiçá não retornassem para casa com o embornal do provento,
no entanto, jamais retornariam com o fardo do desaforo.
Dente por dente, olho por olho.
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