Heitor não respondeu. Absorto em sua inquietação procurava racionalizar o
pensamento. Com certeza seriam fiscais! Quem sabe, policiais! Ligou
imediatamente para Candeia.
Heitor, em que mundo você vive? Vem de um ovo para São Paulo, chega e já
quer prosperidade. Bonança! Depois acha que pode se estabelecer, fixando em
qualquer ponto da cidade. Pensa que ninguém tem ambições na cidade? Você pega
as suas quinquilharias, na real, a sua muamba paraguaia, vem para o Centro e
está tudo beleza. Se oriente, rapaz!
Eu saquei no momento, mas depois fiquei na dúvida, Candeia.
Os dois são fiscais e é melhor que você deixe o achaque amanhã. O crime é
sujo Heitor, e não admite falhas.
Heitor suspirou e chutou uma lata de cerveja que estava no chão. Contava
com o dinheiro para fazer umas benfeitorias na casa. Estava dormindo
praticamente no chão. Não tinha genuinamente uma cama. Fez a cama, adaptada com
pedras de concreto, encontradas numa construção nas cercanias, e um estrado.
A estante foi feita com caixas de madeira, retiradas nas imediações do
Mercado Municipal. Caixas descartadas que foram lixadas e depois envernizadas.
Trabalhou minuciosamente como um artesão. Depois do verniz fez um varal
suspenso sobre a estante. Nas hastes enrolou o tecido ordinário, fixando os
prendedores de plástico nas laterais.
As refeições eram feitas, invariavelmente, na rua. Fogão e geladeira eram
uma questão de tempo. A dificuldade maior era lavar a roupa. Sempre gostou de
roupas bem asseadas. A mãe sempre trabalhou como lavadeira. Trabalhava em casa
e em outras residências da classe média interiorana.
À tarde, depois de desfazer a barraca e colocar os produtos no carrinho,
Heitor foi para casa. Tomou um banho, trocou-se e saiu para a rua. Precisava,
aliás, necessitava de uma bebida. Era mais que uma questão emocional, era fisiológica.
Parou no Bar do Português e tomou logo um traçado para esquentar.
Desabotoou os botões de cima da camisa que lhe arfavam o peito, suspirou e
depois ignorou solenemente as tentativas de conversa de um rapaz, ao lado,
visivelmente embriagado, que discorria sobre os rumos da política nacional.
Política nacional não lhe atraía. Carecia naquele momento de uma alma
feminina. Mais do que balança comercial, aumento do nível do desemprego, queda
do PIB, almejava uma bela trepada. Isso que ele balbuciava, depois de sorver
dois tragos do traçado.
Levantou-se do balcão, driblando o rapaz bêbado, e foi até o caixa para
pagar a conta.
Traz um maço do vermelho e cobra junto com a bebida!
Cadê a comanda?
Verdade. Tá aqui. Tem fogo?
O atendente cedeu um palito e a caixa de fósforos vazia. Regra da casa.
Forneciam os palitos avulsos e a caixa vazia, somente para riscar os fósforos,
sem correr risco de levarem a caixa cheia.
Acendeu o cigarro, deu uma bela tragada e saiu rumo à passarela. No meio
da passagem resolveu dar uma parada. Contemplou o trânsito caótico e a noite
que se anunciava. Não conhecia La Mettrie, senão pensaria como Buk.
Um mendigo se aproximou e pediu um cigarro. Heitor lançou impropérios e
seguiu em direção à Estação da Luz. Antes deu a última baforada e atirou a
guimba na avenida abaixo da passarela.
Parou no primeiro bar que encontrou na Rua Mauá. Pediu uma maria-mole e ficou
observando a movimentação na Estação. Um frenesi de pessoas e carros. Heitor
imaginava a vida da multidão que entrava e saía da Estação. Uns, em busca de
sonhos: outros, desiludidos. Alguns, na vã tentativa de chegar em casa mais
cedo. Muitos chegariam e teriam um cachorro que os reconheceria de longe.
Latiria, abanaria o rabo e esperaria um simples carinho do dono. Odiava
cachorros.
Muitos também teriam esposa e filhos esperando. A esposa terminando o
jantar. A filha concluindo a lição de casa. O filho chutando a bola na parede
sem acabamento da garagem. Pensou com saudades na mãe. Sempre que voltava do
trabalho, em Bocaina, a mãe o aguardava. Mesmo em noites que chegava tarde em
casa, a mãe sempre transmitia algum carinho.
Heitor, deixei no fogão a janta. Não vá dormir com a barriga vazia.
Sempre foi paparicado pela mãe. Proteção extrema da genitora.
Hoje voltaria para casa sem ninguém o esperando. Sem ao menos uma palavra
de carinho. Uma comida no fogão. Um olhar afetivo. Uma cama arrumada.
Um senhor, cabelos grisalhos, chapéu panamá e bem agasalhado com o
casaco, pediu informação para Heitor. Conhece o Bar das Putas?
Heitor balançou a cabeça, exprimindo desconhecimento, e o senhor
agradeceu.
O senhor, então, pediu uma cerveja ao taberneiro e sentou numa mesa
próximo à entrada do bar. Heitor fitou o homem e dirigiu-se à mesa. A
introversão inexistia com a embriaguez. Heitor queria saber sobre o antro
procurado. O senhor, na retaguarda com a aproximação de Heitor, balbuciou
poucas palavras. Sabia que o bar era próximo da Estação. Um amigo era frequentador
e fez a indicação.
Heitor levantou sobressaltado da mesa e saiu à procura do bar. Fez o
convite para o senhor acompanhá-lo na aventura. O velho, escaldado, copiou
Heitor, como na primeira investida, e balançou a cabeça negativamente.
Conhece o Bar das Putas? – Heitor perguntou a um homem, que
apressadamente entrava na Estação.
Não tenho a mínima noção. Acho que todos aqui, infelizmente, foram
tomados por elas – desdenhou o homem, com ares de pastor evangélico.
Heitor continuou a busca, que antes era do senhor com cabelos grisalhos,
e agora era mais que sua. A adesão à causa foi incondicional. Aportou em outro
bar e pediu, logo, outro traçado.
Não foi preciso mais informações. Finalmente tinha alcançado o alvo.
Sentiu-se mais leve. A leveza do papel que recebeu na rua. Propaganda de "feitiço do amor: trazemos a pessoa amada ou o seu dinheiro de volta".
Comprou ficha para a jukebox e caminhava para uma mesa vazia, quando uma
morena de vestido vermelho, sapatos de salto altos e maquiagem barata o
abordou.
Pagou uma cerveja para a morena e acionou a juke. Uma música romântica,
bem piegas, dançando coladinhos. Transeuntes espiavam pela porta de acesso ao
bar. Os frequentadores riam, em tom de deboche. Heitor, alheio aos burburinhos,
esperava o momento de dar o bote. Um caçador feroz, não um caçador esportivo.
Laçaria a presa, sem temeridades. Um caçador de subsistência.
A morena propôs o hotel ao lado. Cem metros de distância. Heitor franziu
a testa e não pestanejou. Pagou a conta e viraram para a Casper Líbero no
encalço da privacidade furtiva.
Subiram rapidamente as escadarias de acesso. Na portaria, a morena acenou
para um rapaz, que só sinalizou positivamente. Não foi necessário nem as
identificações de praxe. Ela era da casa. Parceira de negócios.
O quarto sessenta e dois estava livre. Ela com a chave nas mãos, cujo
chaveiro inusitado era constituído por um pedaço de madeira, semelhante aos
usados em banheiros de botecos engordurados.
Heitor, um cão faminto, arrancou a camisa furiosamente, despedaçando os
primeiros botões, enquanto a morena tirava os sapatos calmamente, feito um
monge budista.
Antes das preliminares, Heitor advertiu. Sem tocar nas suas orelhas.
Preliminares? – pensou emudecida a morena – Se ele quisesse teria que
pagar por isso e dobrado. De graça só com o namorado, que a esperava
estoicamente, todas as noites, em Ermelino Matarazzo.
Ela anuiu com a cabeça e sussurrou frivolidades, mas Heitor não deu
ouvidos. Pulou na caça, pronto para o abate. A desprovida cama balançou com o
impacto. Os lençóis manchados, envoltos nos corpos nus.
Os urros romperam o alicerce das paredes carcomidas do hotel. A goteira
da pia do banheiro pingando impunemente. O toca-fitas instalado na cabeceira da
cama tocava uma música qualquer e o bramido do casal atormentava o sono dos
justos. Os justos e os ímpios que repousavam nas suas alcovas, vigiados por
despertadores comprados na Rua Vinte e Cinco de Março.
Despertadores eletrônicos colocados em criados-mudos, assolando a cabeça
dos adormecidos letárgicos. Os que adormecem e os que buscam hipnóticos para
aplacar a insônia. Na avenida, um falso profeta anunciava em voz alta, "o meu
socorro vem do Senhor, que fez os céus e a terra, ele não permitirá que você
tropece e o seu protetor se manterá alerta, sim, o protetor de Israel não
dormirá, pois ele está sempre alerta".
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