Epifania 244: Parte 18


Heitor não respondeu. Absorto em sua inquietação procurava racionalizar o pensamento. Com certeza seriam fiscais! Quem sabe, policiais! Ligou imediatamente para Candeia.
Heitor, em que mundo você vive? Vem de um ovo para São Paulo, chega e já quer prosperidade. Bonança! Depois acha que pode se estabelecer, fixando em qualquer ponto da cidade. Pensa que ninguém tem ambições na cidade? Você pega as suas quinquilharias, na real, a sua muamba paraguaia, vem para o Centro e está tudo beleza. Se oriente, rapaz!
Eu saquei no momento, mas depois fiquei na dúvida, Candeia.
Os dois são fiscais e é melhor que você deixe o achaque amanhã. O crime é sujo Heitor, e não admite falhas.
Heitor suspirou e chutou uma lata de cerveja que estava no chão. Contava com o dinheiro para fazer umas benfeitorias na casa. Estava dormindo praticamente no chão. Não tinha genuinamente uma cama. Fez a cama, adaptada com pedras de concreto, encontradas numa construção nas cercanias, e um estrado.
A estante foi feita com caixas de madeira, retiradas nas imediações do Mercado Municipal. Caixas descartadas que foram lixadas e depois envernizadas. Trabalhou minuciosamente como um artesão. Depois do verniz fez um varal suspenso sobre a estante. Nas hastes enrolou o tecido ordinário, fixando os prendedores de plástico nas laterais.
As refeições eram feitas, invariavelmente, na rua. Fogão e geladeira eram uma questão de tempo. A dificuldade maior era lavar a roupa. Sempre gostou de roupas bem asseadas. A mãe sempre trabalhou como lavadeira. Trabalhava em casa e em outras residências da classe média interiorana.
À tarde, depois de desfazer a barraca e colocar os produtos no carrinho, Heitor foi para casa. Tomou um banho, trocou-se e saiu para a rua. Precisava, aliás, necessitava de uma bebida. Era mais que uma questão emocional, era fisiológica.
Parou no Bar do Português e tomou logo um traçado para esquentar. Desabotoou os botões de cima da camisa que lhe arfavam o peito, suspirou e depois ignorou solenemente as tentativas de conversa de um rapaz, ao lado, visivelmente embriagado, que discorria sobre os rumos da política nacional.
Política nacional não lhe atraía. Carecia naquele momento de uma alma feminina. Mais do que balança comercial, aumento do nível do desemprego, queda do PIB, almejava uma bela trepada. Isso que ele balbuciava, depois de sorver dois tragos do traçado.
Levantou-se do balcão, driblando o rapaz bêbado, e foi até o caixa para pagar a conta.
Traz um maço do vermelho e cobra junto com a bebida!
Cadê a comanda?
Verdade. Tá aqui. Tem fogo?
O atendente cedeu um palito e a caixa de fósforos vazia. Regra da casa. Forneciam os palitos avulsos e a caixa vazia, somente para riscar os fósforos, sem correr risco de levarem a caixa cheia.
Acendeu o cigarro, deu uma bela tragada e saiu rumo à passarela. No meio da passagem resolveu dar uma parada. Contemplou o trânsito caótico e a noite que se anunciava. Não conhecia La Mettrie, senão pensaria como Buk.
Um mendigo se aproximou e pediu um cigarro. Heitor lançou impropérios e seguiu em direção à Estação da Luz. Antes deu a última baforada e atirou a guimba na avenida abaixo da passarela.
Parou no primeiro bar que encontrou na Rua Mauá. Pediu uma maria-mole e ficou observando a movimentação na Estação. Um frenesi de pessoas e carros. Heitor imaginava a vida da multidão que entrava e saía da Estação. Uns, em busca de sonhos: outros, desiludidos. Alguns, na vã tentativa de chegar em casa mais cedo. Muitos chegariam e teriam um cachorro que os reconheceria de longe. Latiria, abanaria o rabo e esperaria um simples carinho do dono. Odiava cachorros.
Muitos também teriam esposa e filhos esperando. A esposa terminando o jantar. A filha concluindo a lição de casa. O filho chutando a bola na parede sem acabamento da garagem. Pensou com saudades na mãe. Sempre que voltava do trabalho, em Bocaina, a mãe o aguardava. Mesmo em noites que chegava tarde em casa, a mãe sempre transmitia algum carinho.
Heitor, deixei no fogão a janta. Não vá dormir com a barriga vazia.
Sempre foi paparicado pela mãe. Proteção extrema da genitora.
Hoje voltaria para casa sem ninguém o esperando. Sem ao menos uma palavra de carinho. Uma comida no fogão. Um olhar afetivo. Uma cama arrumada.
Um senhor, cabelos grisalhos, chapéu panamá e bem agasalhado com o casaco, pediu informação para Heitor. Conhece o Bar das Putas?
Heitor balançou a cabeça, exprimindo desconhecimento, e o senhor agradeceu.
O senhor, então, pediu uma cerveja ao taberneiro e sentou numa mesa próximo à entrada do bar. Heitor fitou o homem e dirigiu-se à mesa. A introversão inexistia com a embriaguez. Heitor queria saber sobre o antro procurado. O senhor, na retaguarda com a aproximação de Heitor, balbuciou poucas palavras. Sabia que o bar era próximo da Estação. Um amigo era frequentador e fez a indicação.
Heitor levantou sobressaltado da mesa e saiu à procura do bar. Fez o convite para o senhor acompanhá-lo na aventura. O velho, escaldado, copiou Heitor, como na primeira investida, e balançou a cabeça negativamente.
Conhece o Bar das Putas? – Heitor perguntou a um homem, que apressadamente entrava na Estação.
Não tenho a mínima noção. Acho que todos aqui, infelizmente, foram tomados por elas – desdenhou o homem, com ares de pastor evangélico.
Heitor continuou a busca, que antes era do senhor com cabelos grisalhos, e agora era mais que sua. A adesão à causa foi incondicional. Aportou em outro bar e pediu, logo, outro traçado.
Não foi preciso mais informações. Finalmente tinha alcançado o alvo. Sentiu-se mais leve. A leveza do papel que recebeu na rua. Propaganda de "feitiço do amor: trazemos a pessoa amada ou o seu dinheiro de volta".
Comprou ficha para a jukebox e caminhava para uma mesa vazia, quando uma morena de vestido vermelho, sapatos de salto altos e maquiagem barata o abordou.
Pagou uma cerveja para a morena e acionou a juke. Uma música romântica, bem piegas, dançando coladinhos. Transeuntes espiavam pela porta de acesso ao bar. Os frequentadores riam, em tom de deboche. Heitor, alheio aos burburinhos, esperava o momento de dar o bote. Um caçador feroz, não um caçador esportivo. Laçaria a presa, sem temeridades. Um caçador de subsistência.
A morena propôs o hotel ao lado. Cem metros de distância. Heitor franziu a testa e não pestanejou. Pagou a conta e viraram para a Casper Líbero no encalço da privacidade furtiva.
Subiram rapidamente as escadarias de acesso. Na portaria, a morena acenou para um rapaz, que só sinalizou positivamente. Não foi necessário nem as identificações de praxe. Ela era da casa. Parceira de negócios.
O quarto sessenta e dois estava livre. Ela com a chave nas mãos, cujo chaveiro inusitado era constituído por um pedaço de madeira, semelhante aos usados em banheiros de botecos engordurados.
Heitor, um cão faminto, arrancou a camisa furiosamente, despedaçando os primeiros botões, enquanto a morena tirava os sapatos calmamente, feito um monge budista.
Antes das preliminares, Heitor advertiu. Sem tocar nas suas orelhas.
Preliminares? – pensou emudecida a morena – Se ele quisesse teria que pagar por isso e dobrado. De graça só com o namorado, que a esperava estoicamente, todas as noites, em Ermelino Matarazzo.
Ela anuiu com a cabeça e sussurrou frivolidades, mas Heitor não deu ouvidos. Pulou na caça, pronto para o abate. A desprovida cama balançou com o impacto. Os lençóis manchados, envoltos nos corpos nus.
Os urros romperam o alicerce das paredes carcomidas do hotel. A goteira da pia do banheiro pingando impunemente. O toca-fitas instalado na cabeceira da cama tocava uma música qualquer e o bramido do casal atormentava o sono dos justos. Os justos e os ímpios que repousavam nas suas alcovas, vigiados por despertadores comprados na Rua Vinte e Cinco de Março.
Despertadores eletrônicos colocados em criados-mudos, assolando a cabeça dos adormecidos letárgicos. Os que adormecem e os que buscam hipnóticos para aplacar a insônia. Na avenida, um falso profeta anunciava em voz alta, "o meu socorro vem do Senhor, que fez os céus e a terra, ele não permitirá que você tropece e o seu protetor se manterá alerta, sim, o protetor de Israel não dormirá, pois ele está sempre alerta".

Comentários