Capítulo Cinco
O pulsar
"Estou farto do lirismo comedido/Do lirismo
bem comportado/Do lirismo funcionário público com livro de ponto
expediente/protocolo e manifestações de apreço ao Sr. Diretor./Estou farto do
lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um
vocábulo./Abaixo os puristas/Todas as palavras sobretudo os barbarismos
universais/Todas as construções sobretudo as sintaxes de excepção/Todos os
ritmos sobretudo os inumeráveis/Estou farto do lirismo
namorador/Político/Raquítico/Sifilítico/De todo lirismo que capitula ao que
quer que seja fora de si mesmo/De resto não é lirismo/Será contabilidade tabela
de co-senos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as
diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc./Quero antes o lirismo dos
loucos/O lirismo dos bêbados/O lirismo difícil e pungente dos bêbedos/O lirismo
dos clowns de Shakespeare/ Não quero mais saber do lirismo que não é
libertação".
Poética
Manuel
Bandeira
Velho Buk
O divórcio foi, enfim, realizado. Velho Buk e Isaura chegaram
amistosamente a um consenso, sem entreveros. O Velho não colocou ressalvas,
tudo foi feito de forma amigável. Buk alegou problemas de saúde e não
compareceu novamente à audiência. Delegou as decisões ao advogado. Sem
litígios.
O Velho Buk chegou efusivo ao
Epifania à tarde. Precisava comemorar. Não festejava a separação em si. Tinha
apreço por Isaura. O que incomodava eram os meandros burocráticos. Tinha
rasgado o nó dos compromissos. Evitava, invariavelmente, o aparato
institucional.
Estacionou o carro próximo ao bar e
seguiu radiante. Entrou triunfante em seu templo, balançando a chave do
automóvel.
Viva Baudelaire e Bandeira, Osório
traga-me logo uma cadeira. Viva o Boca do Inferno, o Gregório, não esquece do
uísque, Osório.
Osório, quanto lhe devo, meu
querido? Saí ontem daqui dando cabriola nas paredes.
Não deve nada, Buk. O senhor acertou
tudo. Está tudo certinho, patrão.
Patrão o raio que o parta! Sem essa
de patrão ou chefia. Estamos atolados na mesma merda. Falando em latrina,
Osório, quer ficar com o meu carro?
Não dá, Velho. Não tenho condições
de pagar. Fora de cogitação e tem outra, o carro está perfeito. Se isso é uma
merda, imagina o que eu tinha.
Osório, não precisa me pagar. Vai
descontando aqui na conta. Resolvi abolir carro da minha vida. Só me traz dor
de cabeça. É estacionamento, IPVA, combustível. Basta! Moro no Centro e me
desloco por aqui com relativa facilidade.
Endoidou de vez?
É pegar ou largar! Se não quiser vou
botar fogo.
Tu é um doido varrido, Buk – afirmou
Valdir, que acompanhava de perto a conversa.
Velho Buk, – continuou Valdir – você
vai mesmo me arrumar os livros? Fica tranquilo, amanhã te trago o
primeiro. Lê com calma e vamos discutindo aqui no bar.
Qual é a sugestão?
Vamos começar com o meu vizinho
Roberto Freire. Um anarquista que mora no prédio ao lado do meu. Vou trazer o "Sem tesão não há solução". Gostou do título?
Que isso, Velho? Estou falando
sério, não quero sacanagem.
Estúpido, presta bem atenção, é um
livro sobre o pulsar da vida. Sobre as couraças que uma sociedade autoritária
impõe. Esquece isso de título. Você me fez lembrar da piada clássica da
bibliotecária, que catalogou "Raízes do Brasil" como botânica. Depois dessa vou
fumar um cigarro lá fora.
Espera aí Buk, vou contigo.O senhor não tem papas na língua.
Sempre me divirto muito ouvindo essas baboseiras. Deixa perguntar uma coisa:
por acaso o senhor é ateu?
O que tem a ver isso? Você já ouviu
falar de um filósofo chamado Nietzsche?
Não. Como é mesmo o nome da
criatura?
Fala-se Nit e escreve
n-i-e-t-z-s-c-h-e. Foi um filósofo alemão. Pois bem, ele dizia que só
acreditava em um Deus que soubesse dançar.
Que blasfêmia!
Eu compartilho a ideia de um poeta
brasileiro, chamado Roberto Piva. Ele disse que só acredita num Deus que beba.
Nesse Deus eu acredito.
Deus me livre, Buk. – lastimou
Valdir, fazendo o sinal da cruz.
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