Epifania 244: Parte 21


Capítulo Cinco
O pulsar


"Estou farto do lirismo comedido/Do lirismo bem comportado/Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente/protocolo e manifestações de apreço ao Sr. Diretor./Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo./Abaixo os puristas/Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais/Todas as construções sobretudo as sintaxes de excepção/Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis/Estou farto do lirismo namorador/Político/Raquítico/Sifilítico/De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo/De resto não é lirismo/Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc./Quero antes o lirismo dos loucos/O lirismo dos bêbados/O lirismo difícil e pungente dos bêbedos/O lirismo dos clowns de Shakespeare/ Não quero mais saber do lirismo que não é libertação".
Poética
Manuel Bandeira



Velho Buk

O divórcio foi, enfim, realizado. Velho Buk e Isaura chegaram amistosamente a um consenso, sem entreveros. O Velho não colocou ressalvas, tudo foi feito de forma amigável. Buk alegou problemas de saúde e não compareceu novamente à audiência. Delegou as decisões ao advogado. Sem litígios.
O Velho Buk chegou efusivo ao Epifania à tarde. Precisava comemorar. Não festejava a separação em si. Tinha apreço por Isaura. O que incomodava eram os meandros burocráticos. Tinha rasgado o nó dos compromissos. Evitava, invariavelmente, o aparato institucional.
Estacionou o carro próximo ao bar e seguiu radiante. Entrou triunfante em seu templo, balançando a chave do automóvel.
Viva Baudelaire e Bandeira, Osório traga-me logo uma cadeira. Viva o Boca do Inferno, o Gregório, não esquece do uísque, Osório.
Osório, quanto lhe devo, meu querido? Saí ontem daqui dando cabriola nas paredes.
Não deve nada, Buk. O senhor acertou tudo. Está tudo certinho, patrão.
Patrão o raio que o parta! Sem essa de patrão ou chefia. Estamos atolados na mesma merda. Falando em latrina, Osório, quer ficar com o meu carro?
Não dá, Velho. Não tenho condições de pagar. Fora de cogitação e tem outra, o carro está perfeito. Se isso é uma merda, imagina o que eu tinha.
Osório, não precisa me pagar. Vai descontando aqui na conta. Resolvi abolir carro da minha vida. Só me traz dor de cabeça. É estacionamento, IPVA, combustível. Basta! Moro no Centro e me desloco por aqui com relativa facilidade.
Endoidou de vez?
É pegar ou largar! Se não quiser vou botar fogo.
Tu é um doido varrido, Buk – afirmou Valdir, que acompanhava de perto a conversa.
Velho Buk, – continuou Valdir – você vai mesmo me arrumar os livros?         Fica tranquilo, amanhã te trago o primeiro. Lê com calma e vamos discutindo aqui no bar.
Qual é a sugestão?
Vamos começar com o meu vizinho Roberto Freire. Um anarquista que mora no prédio ao lado do meu. Vou trazer o "Sem tesão não há solução". Gostou do título?
Que isso, Velho? Estou falando sério, não quero sacanagem.
Estúpido, presta bem atenção, é um livro sobre o pulsar da vida. Sobre as couraças que uma sociedade autoritária impõe. Esquece isso de título. Você me fez lembrar da piada clássica da bibliotecária, que catalogou "Raízes do Brasil" como botânica. Depois dessa vou fumar um cigarro lá fora.
Espera aí Buk, vou contigo.O senhor não tem papas na língua. Sempre me divirto muito ouvindo essas baboseiras. Deixa perguntar uma coisa: por acaso o senhor é ateu?
O que tem a ver isso? Você já ouviu falar de um filósofo chamado Nietzsche?
Não. Como é mesmo o nome da criatura?
Fala-se Nit e escreve n-i-e-t-z-s-c-h-e. Foi um filósofo alemão. Pois bem, ele dizia que só acreditava em um Deus que soubesse dançar.
Que blasfêmia!
Eu compartilho a ideia de um poeta brasileiro, chamado Roberto Piva. Ele disse que só acredita num Deus que beba. Nesse Deus eu acredito.
Deus me livre, Buk. – lastimou Valdir, fazendo o sinal da cruz.

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