Súplica cearense


Alvíssaras! Alvíssaras!

Peço atenção, parcos leitores e, sobretudo, amantes de botequim.

Nem tudo está perdido.

O Bar do Ceará resiste!

Violeta Parra, minha querida, o bar, "tão frágil como um segundo", ainda respira.

Como "cães farejadores do cotidiano" -- como bem definiu o mestre Antonio Candido --, nós, reles cronistas, flanamos na alma encantadora das ruas à procura do que restou da cultura popular.

Na esquina das ruas Abolição e São Domingos, Bixiga, impenetrável aos raios gourmetizadores, o Bar do Ceará sobrevive.

Passo a bola para o Xico Sá, cronista e amante inveterado do lirismo dos botequins. 

"Depois do homem-buquê, o cidadão que cheira a rolha e faz um tratado sobre o amadeirado do vinho, um tipo muito mais perigoso é o camarada do raio gourmetizador. Ele não pode ver um clássico ou tradicional prato da cozinha em paz. Pensa logo em fazer uma releitura".

Prossegue o cronista. "Nem a moela, um dos clássicos dos tira-gostos, escapou do terrorismo de tal assombrosa pessoa. O sarapatel, meu Deus, está com os dias contados; a mocofava, idem".

Para a alegria nossa e do cronista, as iguarias do boteco passam longe da modinha gourmet.

Ovos cozidos coloridos dão vivacidade à estufa.

A salsicha, cujo molho mais se assemelha ao Vedacit, permanece intocada desde 1926, ano que Meneghetti, o ladrão anarquista, residia na Rua Abolição.

O pitoresco torresmo, também conhecido como barrinha de cereal, cujo valor não ultrapassa míseros copeques, há anos contribui com o aumento de hipertensos ao Instituto do Coração.

O séquito de frequentadores nos faz lembrar os personagens da película espanhola "Segunda-feira ao sol".

"Erguemos San Pablo de Piratininga e hoje no tengo un centavo para tomar una cachaça", me assopra, num portunhol selvagem e triste, um assecla do boteco.

Cinematografia da vida real.

"Tá vendo aquele edifício moço?/Ajudei a levantar/Foi um tempo de aflição/Eram quatro condução/Duas pra ir, duas pra voltar/Hoje depois dele pronto/Olho pra cima e fico tonto/Mas me chega um cidadão/E me diz desconfiado, tu tá aí admirado/Ou tá querendo roubar?/Meu domingo tá perdido/Vou pra casa entristecido/Dá vontade de beber/E pra aumentar o meu tédio/Eu nem posso olhar pro prédio/Que eu ajudei a fazer".


Comentários

  1. Oi, Gustavo, antes de ir ao assunto do comentário, já vou dizendo que estou seguindo o que escreve, então capricha! (vai ter que me aguentar agora, rsrs). Enfim, parabéns pelo humor e leveza do texto; gostei mesmo.

    Ia dizendo que escrevi uma crônica em meu blog, mas nem se compara com as do Xico Sá. Não é a toa que o cara, na minha opinião, é o terror dos canais Globo, seja lá que diabos que isso quer dizer, kkk

    Já sobre mim, digamos que a minha praia literária no blog é o conto.

    Abraço gorduroso de um novo leitor.

    Obs - Caso se interesse em ler meu primeiríssimo - e único. - conto e dizer o que achou dele, é só acessar:

    http://robertocamilotti.blogspot.com/2016/11/cronica-muito-poder-em-um-segundo.html

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    1. Salve, salve Roberto!
      Muito obrigado, meu caro!
      Eu li a crônica. Muito interessante!
      Grande abraço

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  2. Grande Gustavo, parabéns pelo texto.
    "O pitoresco torresmo, também conhecido como barrinha de cereal..." kkkk sensacional.

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  3. Sensacional!
    A salsicha, cujo molho mais se assemelha ao Vedacit, permanece intocada desde 1926.

    Adorei Gustavo! Preciso conferir esses ovos coloridos com certeza!

    Adorei!!!

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